segunda-feira, 17 de março de 2025

Sobre as diferentes dimensões do saber

Uma das coisas que mais me fascina nas Engenharias é como a beleza pode emergir da funcionalidade. Na Engenharia Eletrônica, por exemplo, as placas de circuito impresso de maior qualidade são também as mais bonitas. É uma relação bem explícita:

  • A utilização do espaço disponível é maximizada quando o espaçamento entre todas as trilhas é igual. Visualmente, o resultado é extremamente harmônico, como uma zebra.
  • O componente mais importante da plaquinha, que pode ser um microcontrolador, é posicionado no centro para facilitar o acesso aos demais componentes. Visualmente, garante simetria.
  • Assim como um documento, uma PCB pode ter frente e verso. Se for possível evitar o verso, melhor, porque diminui custos. Visualmente, facilita a compreensão do todo, sem precisar ficar virando a plaquinha.

Placas de circuito impresso (PCBs) prontas para a impressão propriamente dita. Essa visualização já é bem mais próxima do que todo mundo conhece por placa de circuito impresso aka plaquinha.

Até onde sei, questões estéticas não têm nenhuma importância para a Engenharia Eletrônica, até porque as PCBs não ficam expostas depois que o produto está pronto. O objetivo é sempre a funcionalidade e a beleza é somente um efeito colateral desejável. O curioso é que, mesmo sem buscar intencionalmente, a percepção estética do indivíduo acaba se desenvolvendo. Para muito além desse exemplo, é como se o efeito colateral que aparece em um produto funcional (ser bonito) também aparecesse em quem continuamente desenvolve produtos funcionais (ter percepção do que é belo). Para mim, isso é o crème de la crème da existência humana.

Resumindo, a percepção pode ser desenvolvida indiretamente através da prática. Indiretamente porque o objetivo da prática não é desenvolver percepção, mas sim habilidade e um produto, e a percepção é um efeito secundário. É exatamente o que está escrito no parágrafo acima, mas em linhas gerais, desprendendo-se um pouco mais do exemplo das PCBs.

Outro caminho para o desenvolvimento da percepção é a instrução. Existem diferentes formas de se instruir, por exemplo, assistir aulas, assistir palestras e leitura. Essa ideia fica bem clara ilustrada em um diagrama:


Ou seja, tanto a prática quanto a instrução levam ao desenvolvimento da percepção. Um exemplo bem intuitivo é o da percepção musical, que é desenvolvida tocando o instrumento (prática) e também estudando tópicos de teoria musical como intervalos, escalas e formação de acordes (instrução). Falando de música, vale adicionar que a instrução pode desenvolver a percepção musical, mas não pode desenvolver a habilidade de tocar um instrumento musical. Isso só a prática faz. 

Talvez eu tenha sido um pouco redundante, mas existem casos em que a redundância gera segurança. 

. . .

Quando eu estava no quarto ano da faculdade, passei por uma pessoa que estava doando alguns livros que foram da filha. Essa filha tinha estudado Física e os livros eram os que ela tinha usado durante a faculdade. Fiquei com alguns. Um deles é extremamente especial. Trata-se da segunda edição de Mathematical Methods in the Physical Sciences (Métodos Matemáticos nas Ciências Físicas), que é voltado principalmente para estudantes de Física e de outras áreas que queiram aprimorar ou obter conhecimento matemático.

Esse livro já tinha sido impresso há 9 anos quando eu nasci. Já a lapiseira eu não sei quando foi fabricada, mas ganhei de presente em 2018. Dizem que as lapiseiras japonesas duram uma vida inteira - o desafio está lançado.

É um livro fantástico que atende perfeitamente as expectativas que o título cria. Depois do prefácio, Mary L. Boas, a autora, escreve uma curta seção intitulada To the student, onde orienta o seu leitor a estudar explicando a diferença entre conhecimento (resultante da instrução) e habilidade (resultante da prática):
Para um uso eficaz da matemática, você não precisa só de conhecimento, mas de habilidade. Habilidade só pode ser obtida pela prática. Você pode adquirir um certo conhecimento superficial de matemática só assistindo aulas, mas não pode adquirir habilidade desse jeito. Quantos alunos ouvi falarem "parece tão fácil quando você resolve", ou "eu entendo, mas não consigo resolver os problemas". Essas declarações mostram falta de prática e, consequentemente, falta de habilidade. (...). Sempre estude com lápis e papel. Não se limite à leitura de um exercício resolvido - tente resolvê-lo você mesmo!

No parágrafo seguinte, a autora argumenta ainda mais fortemente a favor da prática, instruindo o leitor a resolver problemas de qualquer maneira. Isso vai na contramão de uma armadilha que alguns estudantes de exatas caem, que é a de querer resolver problemas da maneira mais formal e elegante possível, colocando essa vontade acima da resolução do problema em si:

Não há mérito em passar horas produzindo uma solução de muitas páginas para um problema que pode ser resolvido por um método melhor em poucas linhas. Por favor, ignorem qualquer pessoa que menospreza técnicas de resolução de problemas chamando-as de "truques" ou "atalhos". Você vai descobrir que quanto maior a sua habilidade de escolher métodos eficazes de solução de problemas, mais fácil será para você dominar qualquer conteúdo novo. Mas isso significa prática, prática, prática! A única maneira de aprender a resolver problemas é resolver problemas.
Claro que é preciso considerar que o livro de Mary L. Boas não é um material para estudar matemática pura. Para a Física, a matemática é uma ferramenta e, como engenheiro, afirmo com 95% de convicção que Física sem matemática é filosofia. Por isso a autora orienta que se resolva o máximo possível. Resolver é chegar em uma resposta para o problema. Quanto mais respostas forem alcançadas, maior a habilidade de diferenciar o certo do errado, e quanto maior a habilidade de diferenciar o certo do errado, maiores as chances de eureka.

Arquimedes se esforçou tanto para resolver o problema proposto que foi presenteado repentinamente pela solução, diz a história. Mito ou verdade, é um dos meus casos preferidos da história da ciência - Imagem via El Paraguayo Independente.

Então, feita a ponte entre resolução de problemas, percepção e intuição, a defesa é pelo fim das salas de aula e dos métodos de instrução, já que a prática deliberada gera habilidade, que gera todo o restante? Queremos que o mundo todo seja baseado em PBL? Claro que não. W. Edwards Deming, que transformou para sempre a Administração com os seus conceitos de qualidade, escreveu algo marcante em seu livro Qualidade: A revolução da Administração:
A experiência, sem o auxílio da teoria, nada ensina sobre o que fazer, nem como fazê-lo. A experiência proporciona respostas a uma pergunta, mas a pergunta deriva da teoria.
É a instrução que fornece a teoria. Além da importância filosófica argumentada por Deming, a instrução também faz com que o indivíduo saiba os nomes das coisas e os seus significados. Por exemplo, para quem conhece a Gestalt, a teoria da forma, a palavra simetria tem um significado muito mais amplo e interessante. Ter noção do que as coisas significam adiciona novas possibilidades de interação com o mundo e consigo mesmo, enriquecendo a experiência da existência. Eu acho que vale o esforço.

. . .

Músicas de alguma forma relacionadas com esse assunto:

segunda-feira, 3 de março de 2025

Um texto preguiçoso de carnaval

Sexta-feira. O dia estava quase terminando quando percebi que semana que vem já seria Carnaval. A consciência dos dias de folga relaxou o meu corpo e a minha mente, como se o espaço de tempo entre o sábado e a quarta-feira fosse infinito. O planejamento do primeiro dia foi feito com uma única palavra, faxina, que executei com sucesso.

No domingo de manhã, fui ao mercado para escolher um limpador perfumado para a casa porque as aventuras do sábado tinham acabado com o único restante. As opções disponíveis daquele menor, mais concentrado, não eram muitas porque o mercado mais próximo não é pequeno a ponto de poder ser chamado de mercadinho, mas claramente se posiciona como um estabelecimento que não quer se comprometer com variedade. Afinal, "se não tem tu, vai tu mesmo" é uma conclusão possível para qualquer consumidor apressado e enquanto houver tempo sempre existirão os apressados.

Ainda assim consegui me divertir escolhendo. As fragrâncias disponíveis eram bambu, romã, citronela, alecrim e patchouli com tangerina. Já conhecia as três primeiras e abri os dois últimos para conhecer o cheiro. As duas experiências sensoriais imediatas foram muito agradáveis, mas também muito diferentes. Enquanto o limpador de alecrim tinha um cheiro sóbrio, fechado, foliar, o de patchouli com tangerina se mostrava mais refrescante, aberto e doce, além de obviamente cítrico. Colocando esses adjetivos na mesa, o de alecrim seria a minha escolha, mas eu tinha mais a considerar.

O Pensador, de Rodin, ilustrando ironicamente, ou não, a minha postura ao escolher produtos de limpeza - foto via Cultura Genial.

Em uma escala de extremamente foliar para extremamente doce, a ordem dos aromas seria: alecrim (extremamente foliar), bambu (bastante foliar), citronela (razoavelmente doce), patchouli com tangerina (bastante doce) e romã (extremamente doce). Nem sempre prefiro os aromas foliares, inclusive tendo a não preferi-los porque, mesmo me parecendo mais sofisticados, são cheiros menos persistentes.

Existe uma ligação forte entre olfato e memória, como empiricamente se sabe, e esse momento na prateleira me transportou para a lembrança de um incenso de manga rosa que combinava perfeitamente com tardes quentes, e de um incenso de bambu que combinava muito bem com dias chuvosos ou nublados. O de manga rosa exalava o exato cheiro de manga, enquanto o de bambu era sóbrio, fechado e foliar... exatamente como o limpador de alecrim.

Com essa lembrança frutal tão intensa e a certeza de que mais uma onda de calor estava prestes a chegar, não tive dúvidas e coloquei o de patchouli com tangerina na cestinha. Empolgado, passei um novo pano na casa no mesmo dia. As experiências olfativas nos ensinam, primeiro, que o cheiro da maioria dos produtos, de perfumes a limpadores, tende a mudar com o passar das horas e, segundo, que os aromas cítricos são os que somem mais rápido. Esses ensinamentos foram confirmados com esse limpador, pois a tangerina rapidamente foi embora e só ficou o patchouli.

Sobre o carnaval, ainda restam mais dois dias de folga. Talvez eu volte a publicar amanhã ou depois de amanhã, antes que A Marcha da Quarta-Feira de Cinzas se torne a trilha sonora dos meus pensamentos.


. . .

Atualização (16/03/2025): na semana seguinte à publicação desse post, comprei o limpador de alecrim. O cheiro me surpreendeu porque é, sim, bastante refrescante e combina bem com o calor. Apesar disso, não gostei muito dele para passar na casa inteira porque lembra um chá, um tempero, e não um perfume propriamente dito. Achei ótimo para a cozinha.

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Pergunta honesta: para que serve um blog em 2025? (Parte 2)

A principal motivação para essa série de dois posts, que obviamente termina hoje, é compartilhar alguns motivos para criar um blog em 2025. Na semana passada, apresentei meu ponto de vista sobre algumas mudanças que aconteceram na internet e hoje pretendo chegar em respostas para a pergunta do título.

. . .

Quando Audous Huxley publicou Admirável Mundo Novo, em 1932, alguns capítulos importantes da história da computação já tinham acontecido, como a descrição do sistema de numeração binário por Pingada, a invenção dos conceitos de subrotina, loop e salto condicional por Ada Lovelace, a criação da máquina de cartões perfurados por Herman Hollerith e a fundação da IBM. 

Contudo, apesar desses avanços, a obra de Huxley não idealiza o desenvolvimento computacional como um mecanismo de controle das sociedades. Nas primeiras décadas do século XX, a crença geral era que isso, o controle das sociedades, se conquistava através da força e que a destruição da civilização como era conhecida só poderia acontecer por meio de grandes guerras ou epidemias. Huxley rema contra esse senso comum contando uma história em que as pessoas são rigidamente condicionadas por engenharia genética, psicologia comportamental ainda no berçário e acesso a um calmante poderoso, garantindo a safisfação de todos com a forte estratificação da sociedade.

A história da computação é repleta de episódios interessantes. Por exemplo, no livro IBM e o Holocausto (2001), conta-se que os Aliados se surpreenderam com a organização e a velocidade das atrocidades cometidas nos campos de concentração. O equipamento que apoiou computacionalmente o regime, tornando isso possível, foi a máquina de cartões perfurados - via TecMundo.

O visual futurista da capa de um audiobook de Admirável Mundo Novo lançado em 1956, narrado pelo próprio Huxley  - via Isso Compensa. É uma representação bem alinhada com a realidade descrita no livro.

Quase 100 anos depois, porque faltam apenas 7 anos para o centenário de Admirável Mundo Novo, a civilização ocidental está, por um lado, bem distante dessa distopia porque a engenharia genética e a psicologia comportamental felizmente seguiram outros caminhos. Por outro lado, diferentes grupos sociais estão divididos em círculos quase intransponíveis de interesses e atividades, dificultando a sensibilidade de alguns grupos aos sofrimentos e motivações de outros.

Não serei leviano a ponto de afirmar que isso é exclusivamente provocado pelas redes sociais, mas seria igualmente leviano ignorar que (i) as redes sociais concentram, hoje, cerca de 63% da população mundial e estou falando de 5 bilhões de pessoas, (ii) os algoritmos das redes sociais decidem o que cada usuário vai ver e ler, e que (iii) esses mesmos algoritmos criam um ciclo de retroalimentação onde o usuário só recebe aquilo que consome, gerando as chamadas bolhas de informação ou bolhas digitais. Esse tema tem implicações políticas, econômicas e sociais muito sérias e complexas, e a transparência sobre o funcionamento e as intenções dessas corporações é muito menor do que o impacto que geram nas sociedades.

É nesse contexto que o blog, fundamentalmente um instrumento de publicação de textos, mostra um caminho para escapar dessa influência, acessando e difundindo conteúdo de forma orgânica. Qualquer pessoa com capacidade e entusiasmo para escrever poderia usufruir do prazer de ter um blog, pelos seguintes motivos:

  1. O autor fica livre de formatos e temas impostos pelos algoritmos para que as publicações tenham alcance. 
  2. O autor não está sujeito a banimentos ou exclusões de postagens.
  3. A organização e o acesso ao histórico são muito mais fáceis, sem depender de caóticos sistemas de busca. O blog pode se transformar em uma espécie de acervo da vida e dos interesses do autor.
  4. A personalização da aparência de um blog pode ser tão detalhada quanto se queira, tornando o espaço tão pessoal quanto um quarto. É uma experiência bem diferente da análoga em uma página de rede social, onde os únicos elementos personalizáveis são a foto de perfil, o texto da biografia e, quando existe, a capa.
  5. Ser visitado em um blog tem um sabor muito especial, já que não depende de aparecer em uma timeline e sim de um acesso voluntário do leitor. No geral, as pessoas gostam de ler e falar sobre os textos das pessoas que gostam. É isso que entendo como difusão orgânica de conteúdo. 
  6. De um ponto de vista mais amplo, a retomada dos blogs poderia, a médio e longo prazo, transformar a internet em um lugar menos previsível, com maior diversidade de conteúdo e menos apego a engajamento.

Foto clássica dos livros de geografia para ilustrar a desigualdade social (Tuca Vieira, 2004), anterior à popularização das redes sociais. As bolhas de informação geram, nos campos ideológico e cognitivo, divisões bem parecidas com essa - via BBC.

Para que esse final não se pareça com um daqueles panfletos em que crianças abraçam leões, é importante afirmar que a derrubada do domínio das redes sociais por meio dos blogs é uma utopia. Lembro de um vídeo em que um guitarrista responde ao questionamento comum de que "a música brasileira piorou" com uma informação bem simples: as pessoas não estudam mais teoria musical, não tocam mais instrumentos, e isso transforma coletivamente a maneira como faz e se escuta música. Quando eu encontrar esse vídeo de novo, incluo no post, mas de certa forma, esse cenário é parecido com o discutido aqui, porque a produção e o consumo de conteúdo em redes sociais algoritmizadas já estão enraizados no cotidiano das pessoas, influenciando como essa problemática é enxergada. Na verdade, assim como na música, para muitos nem há uma problemática.

Na semana passada, uma querida amiga da área da Comunicação me contou que a expansão dos vídeos na internet brasileira é explicada pela nossa cultura, que é oral. Um fato interessante é que quando finalmente a população brasileira teve acesso à alfabetização, o rádio chegou no país e os programas de rádio, sobretudo as radionovelas, ocuparam o espaço de entretenimento que poderia ser da literatura. É uma realidade diferente de países colonizadores como a Inglaterra, onde uma base forte de leitores foi construída porque as pessoas leram muito durante os tempos em que outros meios de comunicação ainda não tinham sido inventados.

É importante pontuar que a criação de conteúdo nas redes sociais é, muito além de uma expressão de si mesmo, uma indústria que emprega, dissemina informação e produz muita coisa boa. Também não defendo que exista uma hierarquia de meios de comunicação, com texto acima do vídeo ou vice-versa. A única coisa que vislumbro é uma alternativa.

. . .

Sugestões de leitura:

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Pergunta honesta: para que serve um blog em 2025?

Toda vez que penso em algo que aconteceu há muito tempo, toca na minha cabeça uma música chamada 20 Anos Blue, que começa assim: "ontem de manhã quando acordei, olhei a vida e me espantei... eu tenho mais de vinte anos". É uma associação automática porque essa é uma música muito densa sobre o peso da idade adulta. Claro que reconheço que 'muito tempo' é um período de tempo relativo e que mesmo crianças podem ter lembranças que aconteceram há muito tempo de acordo com o tempo de vida delas, mas estou falando de pensar em coisas que não pertencem mais ao cotidiano das pessoas como pertenciam antigamente.

Capa do disco Elis, de 1972, em que 20 Anos Blue foi lançada. Nada Será Como Antes, uma das minhas preferidas de todas as músicas cantadas por ela, também está nesse disco - Via Acervo Cult.

Outra música muito boa sobre o peso da idade adulta é Teatro Dos Vampiros, da Legião Urbana. Gosto muito da gravação ao vivo no Metropolitan, voz e violões (Link) - Via Folha.

Uma dessas lembranças é a própria internet, que mudou muito nos últimos 20 anos. Quando cheguei aqui, entre 2004 e 2005, o Orkut já existia, mas o que me empolgava mais eram o MSN e os fotologs. Logo descobri que o melhor da internet estava nos blogs e que neles era possível ler sobre tudo o que me interessava. Era um meio riquíssimo com práticas já parecidas com as das redes sociais de hoje, como linkar outro blog, que era o equivalente a marcar uma pessoa em uma publicação ou adicionar como amigo, dependendo de como era feito. Como não haviam notificações ou timelines, as pessoas visitavam os blogs umas das outras espontaneamente. 

Era em função disso que se movimentava uma parte imensa da internet até cerca de 2010, quando, dentre outros motivos, os youtubers se popularizaram e o Facebook se fortaleceu no Brasil, iniciando uma nova era de produção e consumo de conteúdo que colocou o vídeo à frente do texto em termos de importância, transformando o blog em nicho.

O universo é a melhor representação do que a blogosfera representava para mim no início da minha adolescência - Via Agência FAPESP.

Uma diferença importante entre a blogosfera, que era assim que chamávamos, e as redes sociais de hoje é que não é preciso ter um blog para ler e comentar em blogs. De fato, a maior parte da audiência não tinha seu próprio blog e acompanhava anonimamente. É um paradigma bem diferente do atual, em que só é possível interagir em qualquer rede se houver uma conta, o que acaba forçando o usuário à atividade.

Outra peculiaridade para se destacar é que, em um blog, todo o layout é personalizável. Este blog, por exemplo, tem uma única coluna de conteúdo porque o autor, eu mesmo, quer que ele seja assim, mas poderia ter duas, uma para os posts e outra para o perfil, os links fixos e tudo o mais, que aqui neste blog ficam lá embaixo, no rodapé. É possível baixar temas mais exclusivos e se aventurar em HTML para criar os próprios templates.

Alguns dos temas disponíveis para download no BTemplates, um dos poucos sites de temas para Blogger que sobreviveu ao tempo. Eu, como usuário do Blogger, prefiro personalizar os temas disponibilizados por aqui mesmo porque as possibilidades são quase infinitas, mas não deixei de olhar o BTemplates quando estava colocando este blog de pé.

Também tive as minhas desventuras em meus próprios blogs e quem sabe um dia escrevo sobre esse passado, mas agora gostaria de me voltar para a pergunta do título, afinal, para que serve um blog em 2025 se temos todos os recursos, exceto a personalização de template, em outras redes sociais? O Instagram e o Facebook são bastante usados para texto, se o caso é escrever, enquanto o finado Twitter, atual X, continua exercendo seu papel de acrópole, com todo o respeito aos gregos, e para expressar ideias e ideais, ou contar histórias, o TikTok está cada vez mais forte enquanto o YouTube está aí para todos. Além disso, em todas essas redes as possibilidades de monetização são bem maiores porque é lá que as pessoas estão e isso converge melhor com o mercado digital.

Existe mais de uma resposta para essa pergunta e eu não gostaria de soar proselitista, ou de parecer que estou subindo em um banquinho e julgando o que os outros fazem na internet, primeiro porque a única intenção é refletir e segundo porque a vida está foda mesmo, então escolher como é que se relaxa é o mínimo que todo mundo merece. Mas hoje vou encerrar por aqui porque o domingo está terminando e eu gostaria muito de fechar esse primeiro final de semana de blog com dois posts publicados. Volto na semana que vem, se tudo der certo, com mais alguns parágrafos sobre o assunto. Adianto que o debate que estou propondo não é novo, não se limita a blogs e já começou em outros lugares.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Cinco motivos para ler O Evangelho Segundo Jesus Cristo

No final de dezembro, estabeleci uma meta ousada para 2025: ler pelo menos 1 livro por mês. Não é muito a ponto de transformar a leitura em algo utilitário ou reduzir o valor da experiência, mas também não é pouco a ponto de me deixar relaxado.

Janeiro passou sem nenhum livro lido, mas fevereiro trouxe uma leveza que não vem ao caso detalhar agora e, com ela, veio a vontade de tirar O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, da minha bagunçada estante. Também poderia dizer The Gospel According To Jesus Christ, usando de internacionalismo e não de anglicismo puro, porque Saramago ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1998, elevando-se definitivamente a autor de calibre mundial, e por isso também, sempre também e nunca somente, seus títulos podem ser referenciados tranquilamente em inglês.

Saramago discursando ao receber o Nobel de Literatura, em 15/10/1998 - Via Ersilias.

A minha edição do livro, impressa em 2004 e adquirida em 2020 ou 2021. Fotografia não é um dos meus talentos, então não consegui sumir com a sombra (o reflexo do flash na mesa não compensou, julguei).

Terminei a leitura em poucos dias, talvez cinco ou seis, não me lembro bem, mas sei que levou menos de uma semana. Seguem, então, alguns motivos que me fariam recomendá-lo para um amigo ou familiar e ser classificado como Promotor em uma pesquisa da experiência da leitura desse livro. Estou comprometido a não dar nenhum spoiler.

1. O autor ganhou um Nobel de Literatura

Sim, eu já disse isso, mas não é pecado reforçar que Saramago ganhou um Nobel de Literatura porque isso não é pouca coisa. Ele foi o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o prêmio e só esse já seria um argumento suficiente para devorá-lo. O ponto é que um Nobel de Literatura não é algo que acontece todo dia, então é um atestado muito forte da qualidade da obra.

Guardadas as devidas proporções, eu assisti Parasita só porque o filme ganhou vários Oscar e também foi uma experiência magnífica. Uma pena estarmos entrando, aparentemente, em uma era em que as instituições perdem credibilidade, porque grandes prêmios quase sempre funcionam como ótimas recomendações de conteúdo.

2. É uma obra-prima da língua portuguesa

Durante a leitura, conversei com um português e comentei que estava lendo Saramago. Ele me disse que odeia o autor, apesar de reconhecer sua importância, e explicou que é assim mesmo: Saramago ou se ama, ou se odeia. Já faço parte da categoria que ama, como se percebe, e agradeço aos céus pelo privilégio de poder ter lido esse livro no idioma original e, mais ainda, pela sorte de ter sido alfabetizado em português e de compreender, de berço e de vida, as nuances da língua. "Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo", como Chico Buarque bem escreveu em Fado Tropical.

Chico Buarque, outro gênio do nosso idioma - Via The Music Journal Brazil.

Saramago se posiciona como um narrador onisciente, que dialoga com o leitor e reflete sobre cada um dos acontecimentos, transcendendo o espaço e o tempo, como um filósofo. É um livro completo, que evoca todos os sentimentos, desde os mais elementares, como a raiva, o desejo e o nojo, até os mais complexos, como a compaixão, a vergonha, a culpa e o amor. Coisa de gênio mesmo.

De início, não é uma leitura fácil e demorou um tempo para o meu cérebro se adaptar a um vocabulário tão diversificado, frases tão longas, uma pontuação tão específica e referências sutilíssimas, uma dentro da outra. Mas depois que os olhos se acostumaram, o fluxo foi maravilhoso e fui me sentindo desafiado, página a página. Quando terminei, eu estava até meio transformado em algo que considero melhor.

3. É uma história incrível

Eu diria que essa leitura é muito empolgante para todas as pessoas que tem formação cristã e conhecem as histórias da Bíblia Sagrada. Também deve ser muito empolgante para judeus, já que muito é compartilhado, mas isso só posso supor. O fato é que Saramago conta a história que conhecemos do novo testamento até a paixão de Cristo, reduzindo alguns elementos, amplificando outros e reescrevendo outros ainda, mas está tudo lá, com ricas referências ao velho testamento. 

Para quem é muito religioso, tem muitos pudores ou se preocupa com ofensas que Deus pode sofrer, talvez o livro soe herético, mas eu achei que Saramago foi muito respeitoso em seus questionamentos.
Nas últimas páginas, somos apresentados a uma solução lógica que Jesus encontrou para o seu problema e é simplesmente algo impossível de antecipar que aconteceria daquela maneira, mesmo já conhecendo o final de Jesus na Terra.

4. Além de tudo, é um trabalho valioso a nível histórico

Ainda não procurei saber se Saramago publicou alguma coisa sobre o processo de escrita desse livro, mas é bastante óbvio que demandou um trabalho de pesquisa intenso e detalhado, muito além da própria Bíblia Sagrada. O resultado é uma obra que transporta o leitor para a época em que os fatos se passam. A descrição das paisagens, fauna, flora, casas, construções, mobília, roupas, cidades, ruas, e tudo o mais que se descreve, é tão minuciosa que é possível visualizar com muita clareza o que está sendo narrado.

Caravançaí, um tipo de local bastante citado no livro, que funcionava como hospedagem para viajantes de caravanas, numerosas na época - Via IRNA.

Maria e José, os primeiros personagens que aparecem na história, também revelam muito sobre os papeis de gênero daquela sociedade. Suas decisões, comportamentos e pensamentos não cabem, de nenhum modo, no século XXI e isso fica explícito até nas orações que fazem. Todos os personagens também desempenham esse papel, mas com Maria e José os conflitos são mais densos.

5. Estilisticamente, é muito ousado

Saramago não escreve como se conversa e nem como se estivesse se esforçando para manter o leitor entretido e concentrado, o que vai na contramão de todas as estratégias atuais de produção de conteúdo, literário ou não. A minha impressão geral é que ele distorce a forma para transmitir seu conteúdo, de um modo parecido com o que fazia Picasso. Mesmo que a forma não seja a usual, o conteúdo está lá, denso e coerente.

Guernica, de Picasso, que retrata o bombardeio aéreo à cidade de Guernica - Via Wikipedia.

. . .

Por fim, levei cerca de cinco anos entre comprar e ler esse livro. Eu já tinha começado algumas vezes, mas interrompi por diferentes motivos. Eu diria que, para mim, foi necessária uma certa maturidade para conseguir mergulhar na leitura, que só foi alcançada agora, embora eu ainda me considere bastante verde na vida. Faço votos de que eu ainda tenha o que amadurecer, e não apodrecer.