Janeiro passou sem nenhum livro lido, mas fevereiro trouxe uma leveza que não vem ao caso detalhar agora e, com ela, veio a vontade de tirar O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, da minha bagunçada estante. Também poderia dizer The Gospel According To Jesus Christ, usando de internacionalismo e não de anglicismo puro, porque Saramago ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1998, elevando-se definitivamente a autor de calibre mundial, e por isso também, sempre também e nunca somente, seus títulos podem ser referenciados tranquilamente em inglês.
Saramago discursando ao receber o Nobel de Literatura, em 15/10/1998 - Via Ersilias.
A minha edição do livro, impressa em 2004 e adquirida em 2020 ou 2021. Fotografia não é um dos meus talentos, então não consegui sumir com a sombra (o reflexo do flash na mesa não compensou, julguei).
Terminei a leitura em poucos dias, talvez cinco ou seis, não me lembro bem, mas sei que levou menos de uma semana. Seguem, então, alguns motivos que me fariam recomendá-lo para um amigo ou familiar e ser classificado como Promotor em uma pesquisa da experiência da leitura desse livro. Estou comprometido a não dar nenhum spoiler.
1. O autor ganhou um Nobel de Literatura
Sim, eu já disse isso, mas não é pecado reforçar que Saramago ganhou um Nobel de Literatura porque isso não é pouca coisa. Ele foi o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o prêmio e só esse já seria um argumento suficiente para devorá-lo. O ponto é que um Nobel de Literatura não é algo que acontece todo dia, então é um atestado muito forte da qualidade da obra.
Guardadas as devidas proporções, eu assisti Parasita só porque o filme ganhou vários Oscar e também foi uma experiência magnífica. Uma pena estarmos entrando, aparentemente, em uma era em que as instituições perdem credibilidade, porque grandes prêmios quase sempre funcionam como ótimas recomendações de conteúdo.
2. É uma obra-prima da língua portuguesa
Durante a leitura, conversei com um português e comentei que estava lendo Saramago. Ele me disse que odeia o autor, apesar de reconhecer sua importância, e explicou que é assim mesmo: Saramago ou se ama, ou se odeia. Já faço parte da categoria que ama, como se percebe, e agradeço aos céus pelo privilégio de poder ter lido esse livro no idioma original e, mais ainda, pela sorte de ter sido alfabetizado em português e de compreender, de berço e de vida, as nuances da língua. "Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo", como Chico Buarque bem escreveu em Fado Tropical.
Chico Buarque, outro gênio do nosso idioma - Via The Music Journal Brazil.
Saramago se posiciona como um narrador onisciente, que dialoga com o leitor e reflete sobre cada um dos acontecimentos, transcendendo o espaço e o tempo, como um filósofo. É um livro completo, que evoca todos os sentimentos, desde os mais elementares, como a raiva, o desejo e o nojo, até os mais complexos, como a compaixão, a vergonha, a culpa e o amor. Coisa de gênio mesmo.
De início, não é uma leitura fácil e demorou um tempo para o meu cérebro se adaptar a um vocabulário tão diversificado, frases tão longas, uma pontuação tão específica e referências sutilíssimas, uma dentro da outra. Mas depois que os olhos se acostumaram, o fluxo foi maravilhoso e fui me sentindo desafiado, página a página. Quando terminei, eu estava até meio transformado em algo que considero melhor.
3. É uma história incrível
Eu diria que essa leitura é muito empolgante para todas as pessoas que tem formação cristã e conhecem as histórias da Bíblia Sagrada. Também deve ser muito empolgante para judeus, já que muito é compartilhado, mas isso só posso supor. O fato é que Saramago conta a história que conhecemos do novo testamento até a paixão de Cristo, reduzindo alguns elementos, amplificando outros e reescrevendo outros ainda, mas está tudo lá, com ricas referências ao velho testamento.
Para quem é muito religioso, tem muitos pudores ou se preocupa com ofensas que Deus pode sofrer, talvez o livro soe herético, mas eu achei que Saramago foi muito respeitoso em seus questionamentos.
Nas últimas páginas, somos apresentados a uma solução lógica que Jesus encontrou para o seu problema e é simplesmente algo impossível de antecipar que aconteceria daquela maneira, mesmo já conhecendo o final de Jesus na Terra.
4. Além de tudo, é um trabalho valioso a nível histórico
Ainda não procurei saber se Saramago publicou alguma coisa sobre o processo de escrita desse livro, mas é bastante óbvio que demandou um trabalho de pesquisa intenso e detalhado, muito além da própria Bíblia Sagrada. O resultado é uma obra que transporta o leitor para a época em que os fatos se passam. A descrição das paisagens, fauna, flora, casas, construções, mobília, roupas, cidades, ruas, e tudo o mais que se descreve, é tão minuciosa que é possível visualizar com muita clareza o que está sendo narrado.
Caravançaí, um tipo de local bastante citado no livro, que funcionava como hospedagem para viajantes de caravanas, numerosas na época - Via IRNA.
Maria e José, os primeiros personagens que aparecem na história, também revelam muito sobre os papeis de gênero daquela sociedade. Suas decisões, comportamentos e pensamentos não cabem, de nenhum modo, no século XXI e isso fica explícito até nas orações que fazem. Todos os personagens também desempenham esse papel, mas com Maria e José os conflitos são mais densos.
5. Estilisticamente, é muito ousado
Saramago não escreve como se conversa e nem como se estivesse se esforçando para manter o leitor entretido e concentrado, o que vai na contramão de todas as estratégias atuais de produção de conteúdo, literário ou não. A minha impressão geral é que ele distorce a forma para transmitir seu conteúdo, de um modo parecido com o que fazia Picasso. Mesmo que a forma não seja a usual, o conteúdo está lá, denso e coerente.
. . .
Por fim, levei cerca de cinco anos entre comprar e ler esse livro. Eu já tinha começado algumas vezes, mas interrompi por diferentes motivos. Eu diria que, para mim, foi necessária uma certa maturidade para conseguir mergulhar na leitura, que só foi alcançada agora, embora eu ainda me considere bastante verde na vida. Faço votos de que eu ainda tenha o que amadurecer, e não apodrecer.

Nenhum comentário:
Postar um comentário