Uma das coisas que mais me fascina nas Engenharias é como a beleza pode emergir da funcionalidade. Na Engenharia Eletrônica, por exemplo, as placas de circuito impresso de maior qualidade são também as mais bonitas. É uma relação bem explícita:
- A utilização do espaço disponível é maximizada quando o espaçamento entre todas as trilhas é igual. Visualmente, o resultado é extremamente harmônico, como uma zebra.
- O componente mais importante da plaquinha, que pode ser um microcontrolador, é posicionado no centro para facilitar o acesso aos demais componentes. Visualmente, garante simetria.
- Assim como um documento, uma PCB pode ter frente e verso. Se for possível evitar o verso, melhor, porque diminui custos. Visualmente, facilita a compreensão do todo, sem precisar ficar virando a plaquinha.
Placas de circuito impresso (PCBs) prontas para a impressão propriamente dita. Essa visualização já é bem mais próxima do que todo mundo conhece por placa de circuito impresso aka plaquinha.

Até onde sei, questões estéticas não têm nenhuma importância para a Engenharia Eletrônica, até porque as PCBs não ficam expostas depois que o produto está pronto. O objetivo é sempre a funcionalidade e a beleza é somente um efeito colateral desejável. O curioso é que, mesmo sem buscar intencionalmente, a percepção estética do indivíduo acaba se desenvolvendo. Para muito além desse exemplo, é como se o efeito colateral que aparece em um produto funcional (ser bonito) também aparecesse em quem continuamente desenvolve produtos funcionais (ter percepção do que é belo). Para mim, isso é o crème de la crème da existência humana.
Resumindo, a percepção pode ser desenvolvida indiretamente através da prática. Indiretamente porque o objetivo da prática não é desenvolver percepção, mas sim habilidade e um produto, e a percepção é um efeito secundário. É exatamente o que está escrito no parágrafo acima, mas em linhas gerais, desprendendo-se um pouco mais do exemplo das PCBs.
Outro caminho para o desenvolvimento da percepção é a instrução. Existem diferentes formas de se instruir, por exemplo, assistir aulas, assistir palestras e leitura. Essa ideia fica bem clara ilustrada em um diagrama:

Ou seja, tanto a prática quanto a instrução levam ao desenvolvimento da percepção. Um exemplo bem intuitivo é o da percepção musical, que é desenvolvida tocando o instrumento (prática) e também estudando tópicos de teoria musical como intervalos, escalas e formação de acordes (instrução). Falando de música, vale adicionar que a instrução pode desenvolver a percepção musical, mas não pode desenvolver a habilidade de tocar um instrumento musical. Isso só a prática faz.
Talvez eu tenha sido um pouco redundante, mas existem casos em que a redundância gera segurança.
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Quando eu estava no quarto ano da faculdade, passei por uma pessoa que estava doando alguns livros que foram da filha. Essa filha tinha estudado Física e os livros eram os que ela tinha usado durante a faculdade. Fiquei com alguns. Um deles é extremamente especial. Trata-se da segunda edição de Mathematical Methods in the Physical Sciences (Métodos Matemáticos nas Ciências Físicas), que é voltado principalmente para estudantes de Física e de outras áreas que queiram aprimorar ou obter conhecimento matemático.
Esse livro já tinha sido impresso há 9 anos quando eu nasci. Já a lapiseira eu não sei quando foi fabricada, mas ganhei de presente em 2018. Dizem que as lapiseiras japonesas duram uma vida inteira - o desafio está lançado.
É um livro fantástico que atende perfeitamente as expectativas que o título cria. Depois do prefácio, Mary L. Boas, a autora, escreve uma curta seção intitulada To the student, onde orienta o seu leitor a estudar explicando a diferença entre conhecimento (resultante da instrução) e habilidade (resultante da prática):
Para um uso eficaz da matemática, você não precisa só de conhecimento, mas de habilidade. Habilidade só pode ser obtida pela prática. Você pode adquirir um certo conhecimento superficial de matemática só assistindo aulas, mas não pode adquirir habilidade desse jeito. Quantos alunos ouvi falarem "parece tão fácil quando você resolve", ou "eu entendo, mas não consigo resolver os problemas". Essas declarações mostram falta de prática e, consequentemente, falta de habilidade. (...). Sempre estude com lápis e papel. Não se limite à leitura de um exercício resolvido - tente resolvê-lo você mesmo!
No parágrafo seguinte, a autora argumenta ainda mais fortemente a favor da prática, instruindo o leitor a resolver problemas de qualquer maneira. Isso vai na contramão de uma armadilha que alguns estudantes de exatas caem, que é a de querer resolver problemas da maneira mais formal e elegante possível, colocando essa vontade acima da resolução do problema em si:
Não há mérito em passar horas produzindo uma solução de muitas páginas para um problema que pode ser resolvido por um método melhor em poucas linhas. Por favor, ignorem qualquer pessoa que menospreza técnicas de resolução de problemas chamando-as de "truques" ou "atalhos". Você vai descobrir que quanto maior a sua habilidade de escolher métodos eficazes de solução de problemas, mais fácil será para você dominar qualquer conteúdo novo. Mas isso significa prática, prática, prática! A única maneira de aprender a resolver problemas é resolver problemas.
Claro que é preciso considerar que o livro de Mary L. Boas não é um material para estudar matemática pura. Para a Física, a matemática é uma ferramenta e, como engenheiro, afirmo com 95% de convicção que Física sem matemática é filosofia. Por isso a autora orienta que se resolva o máximo possível. Resolver é chegar em uma resposta para o problema. Quanto mais respostas forem alcançadas, maior a habilidade de diferenciar o certo do errado, e quanto maior a habilidade de diferenciar o certo do errado, maiores as chances de eureka.
Então, feita a ponte entre resolução de problemas, percepção e intuição, a defesa é pelo fim das salas de aula e dos métodos de instrução, já que a prática deliberada gera habilidade, que gera todo o restante? Queremos que o mundo todo seja baseado em PBL? Claro que não. W. Edwards Deming, que transformou para sempre a Administração com os seus conceitos de qualidade, escreveu algo marcante em seu livro Qualidade: A revolução da Administração:
A experiência, sem o auxílio da teoria, nada ensina sobre o que fazer, nem como fazê-lo. A experiência proporciona respostas a uma pergunta, mas a pergunta deriva da teoria.
É a instrução que fornece a teoria. Além da importância filosófica argumentada por Deming, a instrução também faz com que o indivíduo saiba os nomes das coisas e os seus significados. Por exemplo, para quem conhece a Gestalt, a teoria da forma, a palavra simetria tem um significado muito mais amplo e interessante. Ter noção do que as coisas significam adiciona novas possibilidades de interação com o mundo e consigo mesmo, enriquecendo a experiência da existência. Eu acho que vale o esforço.
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Músicas de alguma forma relacionadas com esse assunto:

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